O blog do Leandro Alves

As pessoas são todas umas bisbilhoteiras.  Falam dos vizinhos, falam dos amigos pelas costas, espiam a vida dos outros.  O jornaleiro, o dono da padaria, o cobrador do ônibus, o marido da vizinha, o professor do colégio — ninguém escapa deste prazer humano de falar da vida dos outros.  Pode ser falar bem, mas também falar mal. Algumas pessoas são como eu, transformam tudo em crônicas.

Leandro Alves

O dono da bola

 

 

 

Leandro Alves

Éramos crianças. Eu, contava mais ou menos uns dez anos e você lá pelos onze. Naquela época, como você bem lembra, mesmo hoje casado e com filhos, a gente viveu nossa meninice de pé no chão e jogando bola na rua.  O campo de futebol era a nossa rua mesmo, as traves dos gols eram nossas havaianas velhas que a gente tirava, a bola era presente do seu pai e você emprestava, trazia para jogar comigo. Geralmente jogávamos os dois, apenas você e eu. Em alguns dias eu ganhava de três, dois a zero, quatro a dois. No outro dia, você voltava e fazia cinco a zero. Eu chegava em casa aborrecido, suado, cansado e bem na hora de escurecer.

 

Ver televisão era chato. O bom era ficar na rua, jogar bola, rir, conversar, correr para um lado e para o outro.

 

A gente detestava quando chovia, lembra? Os trovões davam medo, a luz acabava, a chuva não deixava que a gente fosse para a rua. E eu sentia sua falta.  Era engraçado. Eu não gostava quando você tirava sarro da minha cara, não gostava do seu jeito de rir, da sua mania de falar sempre o que pensa mesmo que fosse a maior besteira, mesmo que os outros não gostassem, apesar de tudo e de todo mundo. Se a chuva me fizesse ficar preso em casa, eu queria estar na rua jogando uma pelada com você.

 

A gente cresceu na rua gritando, brincando, rindo. Aquele cansaço de ficar o dia inteiro na rua era bom.  Um dia você perdeu sua bola. Você parecia rico, sua bola era a mais da rua, branca, enorme, robusta e parecia com as dos jogadores de verdade. Só que você nunca foi de se negar a emprestar. Jogava numa boa, gostava de brincar comigo, perdendo ou ganhando. Aí você perdeu a sua bola. Não sei como, mas perdeu.  Eu ganhei uma bola bem pobre e menos bonita do que a que você tinha, mas o fato é que agora eu tinha uma e você não tinha nada. Você era arisco, gostava de pegar minha bola, sair correndo com ela, gargalhando, driblando. Depois me devolvia, claro. Eu jurava que nunca mais jogaria uma pelada com você, mas nós só tínhamos um ao outro. A rua tinha outras crianças sim, mas eram meninas. A gente tinha medo de machucar as meninas. Aliás, a gente só viria a achar graça nas meninas bem mais tarde.

 

Um dia você pegou, chutou a bola muito longe, por cima do telhado do vizinho e aquilo me matou de raiva. Nós pegamos na briga. Fomos às vias de fato, inclusive. Trocamos socos, rolamos no chão, ralamos o joelho e a briga só parou quando seu pai separou a gente. Seu pai veio, olhou feio pra mim, depois o meu veio, falou qualquer coisa pra você meu pai ficou com raiva do seu, eles ficaram ali gritando um com outro, nossas mães, seu irmão e foi uma confusão aquela tarde. Você entrou para a casa chorando, eu também, tudo muito estranho, confuso, esquisito. A gente nunca brigou assim antes.

 

Como ficaria tudo? Como seria sem você? Mesmo assim o que eu queria mesmo era que você desse um jeito de me devolver a bola que chutou na casa dos outros, que subisse lá pra pegar, que conseguisse dinheiro. No dia seguinte seu pai foi lá falar com o dono da casa, pegou a bola, bateu lá em casa e me devolveu.  Aí fiquei chutando contra o muro, jogando futebol sozinho, descobrindo que nada é mais solitário no mundo do que ser dono de uma bola de futebol sem ninguém para jogar comigo.

 

Aquela noite foi estranha, fui dormir triste, pensando na vida, que as férias estavam acabando e logo a gente não teria tanto tempo mais para nossas peladas. E qual não foi minha surpresa ao ver você na manhã seguinte lá no portão lá de casa me chamando para a pelada de sempre. Assim, do nada, sem mais nem menos, como se não tivesse acontecido nada. Você perguntou se eu queria, joguei a bola pro alto, você pegou e eu fui te acompanhando até a rua. A gente tirou as havaianas para fingir que eram as traves, foi começando a jogar e, de repente, seu pai olhou sério para nós e perguntou.

 

— Como é? Vocês ontem não estavam saindo no braço aqui? Eu não briguei com o pai dele só por sua causa?

Aí você disse:

 

— Pai, isso foi ontem.

 

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Respostas de 7

    1. Rafaela, obrigado de coração pelo comentário! Sim, nossa infância foi muito feliz com brincadeiras na rua, a vida ao vivo e a cores, alegria e por aqui continuo brincando com as palavras.

  1. Belíssima crônica!
    Desejo sucesso sempre!
    Continue nos brincando com seus textos.
    Deus te abençoe amigo!

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Foto: Gustavo Noronha

Leandro Alves
Muito prazer!

Mineiro, de Belo Horizonte, cronista, formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC Minas.  Comecei a escrever crônicas postadas nas minhas redes sociais, muita gente gostou e eu continuei. Atualmente, cronista do jornal Porta Voz de Venda Nova. O jornal é impresso, mas esporadicamente também é distribuído online.

Participei do livro “Escrevendo com as emoções”, editora Leonella, sob a curadoria da escritora Márcia Denser.  De 2015 até maio de 2023, participei do Estúdio de Criação Literária, nos formatos presencial e online.

Depois de ler “O padeiro”, crônica de Rubem Braga, e “Flerte”, de Carlinhos de Oliveira, decidi que o que mais desejo fazer nada vida é ser cronista.

Acredito que todos nós, sem exceção, todo dia que saímos de casa, queiramos nós ou não, participamos de um grande filme mudo chamado vida e que tem sempre alguém bisbilhotando tudo o que a gente faz e falando da gente pelas costas. Neste caso, alguns são como eu e escrevem crônicas.  Muito prazer!

Curadoria Márcia Denser