O blog do Leandro Alves

As pessoas são todas umas bisbilhoteiras.  Falam dos vizinhos, falam dos amigos pelas costas, espiam a vida dos outros.  O jornaleiro, o dono da padaria, o cobrador do ônibus, o marido da vizinha, o professor do colégio — ninguém escapa deste prazer humano de falar da vida dos outros.  Pode ser falar bem, mas também falar mal. Algumas pessoas são como eu, transformam tudo em crônicas.

Leandro Alves

Uma senhora

Uma senhora

Leandro Alves

 

Que extraordinária mulher, que personagem incrível, esta senhora que conheci no cinema Belas Artes! Caso você goste de filmes e more em Belo Horizonte, certamente a conhece. Baixinha, cabelos curtos, óculos, vestindo sempre jeans e camiseta básica, andando de muletas para lá e para cá. Não sei com o que trabalha, o que faz para ganhar a vida, não sei se já foi casada, se teve filhos. Se for julgar pelos hábitos, diria que é uma solteirona que vive com os pais ou sustentada por algum parente. Claro, é uma mulher que adora filmes. Gosta de cinema de rua com cafeteria, livraria, frequentadores mais ou menos fiéis, lugares sofisticados, diferentes. A primeira vez que a vi, fascinado, foi num domingo, ali no Belas, quando ela, uma senhora franzina de seus quase sessenta anos, estava sentada na mesa de uma madame com uma revista da Avon aberta oferecendo perfumes, cremes sem que a madame a enxotasse, chamasse o segurança, sem que ela simplesmente se levantasse ou trocasse de mesa. Num outro momento, numa sessão de uma sexta-feira à noite, pouco antes do trailer começar, sentada numa das primeiras cadeiras e de frente para a tela ela levantou-se, olhou bem para a plateia e perguntou: “Quem é que está de carro aí?” Uma mulher na plateia levantou a mão, às gargalhadas, disse “eu estou”. “Então é você que vai me levar para casa”. Conversando com um amigo, também frequentador do cinema, um rapaz que adora estudar e ler na cafeteria também, disse que ela era conhecida ali, que ela marcava, sim, o rosto do frequentador do cinema. Ia até o carro dele, entrava, se recusava a sair enquanto ele, louco da vida, mas sem coragem de dizer um nome feio, não a deixasse na porta da casa dela.  Certa noite, acho que numa sexta-feira, nossa amável personagem, que é deficiente e usa muletas, subiu pelo elevador especial para ir ao segundo andar do cinema. Não é que, ao descer do elevador, o porteiro ofereceu ajuda para que ela chegasse na porta da sala de projeção. Não, ela recusou a ajuda daquele porteiro, baixinho e feio, para ir até a sala de braços dados com um coroa bonitão que ela viu na fila.

Quando a pandemia veio, o cinema fechou e todo mundo ficou em casa por uns tempos. Eu me perguntava por onde andava aquela mulher, como estava fazendo para suportar o isolamento social que o Coronavírus trouxe, aquela mulher que era quase uma personagem incorporada a cada um dos filmes que a gente via ali.

 

Acredito que, neste mundo de gente tão ensimesmada e de mal com a vida, muita gente queria ser como aquela mulher tão ingênua, tão intrigante, ao mesmo tempo tão doce que hoje, infelizmente, não faço a menor ideia por onde anda.

 

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Foto: Gustavo Noronha

Leandro Alves
Muito prazer!

Mineiro, de Belo Horizonte, cronista, formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC Minas.  Comecei a escrever crônicas postadas nas minhas redes sociais, muita gente gostou e eu continuei. Atualmente, cronista do jornal Porta Voz de Venda Nova. O jornal é impresso, mas esporadicamente também é distribuído online.

Participei do livro “Escrevendo com as emoções”, editora Leonella, sob a curadoria da escritora Márcia Denser.  De 2015 até maio de 2023, participei do Estúdio de Criação Literária, nos formatos presencial e online.

Depois de ler “O padeiro”, crônica de Rubem Braga, e “Flerte”, de Carlinhos de Oliveira, decidi que o que mais desejo fazer nada vida é ser cronista.

Acredito que todos nós, sem exceção, todo dia que saímos de casa, queiramos nós ou não, participamos de um grande filme mudo chamado vida e que tem sempre alguém bisbilhotando tudo o que a gente faz e falando da gente pelas costas. Neste caso, alguns são como eu e escrevem crônicas.  Muito prazer!

Curadoria Márcia Denser