Você está lendo o livro proibido?
Crônica de Leandro Alves
Já reparou que está surgindo um novo tipo de leitor nos últimos tempos? Aquele que entra, lê apenas uma frase do texto escrito, cria um contexto próprio, totalmente alheio ao que o escritor quis dizer, e a partir daí vai criando polêmica e propagando suas verdades.
Quem reparou nisso nos últimos tempos foi o nosso cronista Fabrício Carpinejar, numa crônica intitulada “A polêmica do polêmico”, no jornal O Tempo.
O que está em jogo não é “O que o escritor quer dizer?”, mas “O que eu quero ler?”.
O que o outro quer dizer não interessa, quem ele é não faz a menor diferença, ouvir não faz parte do plano. Muita gente parece ter suas próprias convicções. Cada vez mais estapafúrdias, mas tudo bem.
O problema é que isto é parte da vida fora das telas, que ninguém mais tem problemas em esconder. Antes, quando não havia a internet, o preconceito era mais velado; hoje é explícito, dentro e fora das telas.
Por exemplo, vamos pensar em como a sociedade vinha tratando a população negra. Por causa da cor da pele uma pessoa poderia exercer uma profissão, mas não determinadas outras. Poderia amar algumas pessoas, outras não. Frequentar determinadas lojas, outras jamais. Como no caso acima o que interessava não era quem eram aquelas pessoas, mas a cor da pele delas.
Agora tudo ficou às claras. Infelizmente, ninguém sente vergonha de ser preconceituoso.
Negros ainda são vítimas de abordagens policiais desastrosas, a luta pelo racismo estrutural apenas começou, ainda há muito o que fazer.
Pensei em tudo isso ao ler “O avesso da pele”, do Jeferson Tenório. O livro é ótimo, os personagens comovem, a história empolga, o escritor escreve bem.
O personagem do livro é o Pedro, que narra em primeira pessoa a história, escreve uma longa carta ao pai, contando a história dele e recuperando sua memória, um grande professor de escola pública falecido numa desastrosa abordagem policial — a aula deste professor sobre “Crime e castigo” é das páginas mais lindas que li nos últimos tempos.
Peguei o livro para ler na sexta-feira, li no sábado à tarde e terminei domingo. Que tal se alguém filmasse?
Como acreditar que um livro assim tenha sido proibido e recolhido das escolas do sul do país? Os estados do Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Goiás literalmente retiraram os livros das escolas públicas.
Uma diretora do Rio Grande do Sul — de quem se esperava o mínimo de interpretação, aliás — pinçou aleatóriamente um diálogo entre pai e filho sobre sexualidade e saiu difamando a obra por aí.
O livro não é sobre sexo, é sobre a memória de um pai ausente e sobre o racismo.
Jeferson Tenório nos explica o que é racismo, como ele se manifesta, as falas que muita gente se repete sem perceber que está dilacerando o coração do outro. Ao ler o livro, temos a oportunidade de eliminar o racismo de uma vez de dentro da gente.
Então estão formando, aqui e acolá, leitores de poucos parágrafos da obra, dispostos a difamar, julgar e condenar o autor. O mais grave: sem sequer examinarem a obra. Pior: eles sequer sabem do que se trata o livro.
Se é que já leram algum livro até o final na vida, o que duvido.
A rigor, acredito que ninguém deveria ser obrigado a ler, ninguém tem que perder tempo com um livro caso não seja o seu desejo. Ao invés disso, vá correr uma maratona, jogar bola, viajar. Negar a leitura a quem ainda está se formando é inaceitável.
A caretice que tomou conta das redes sociais e do Brasil já passou de todos os limites.
Hoje saí pela manhã pensando na crônica que escrevi agora. Fui num cartório, ali na Rua Goiás, aqui em Belo Horizonte para tirar uma certidão de nascimento nova. A antiga estava rasurada, velha, manchada e para tirar o RG novo nacional não serve.
“Está lendo o livro proibido, rapaz?”
Quem perguntava era um homem que estava atrás de mim na fila. Conversamos um pouco, falamos da baboseira que é esta censura toda, eu me despedi dele, fui no meu restaurante e almocei. Quando voltava para casa, vi que “O avesso da pele” ultrapassou 1400% nas vendas depois de tudo isso. Viva a literatura!