O blog do Leandro Alves

As pessoas são todas umas bisbilhoteiras.  Falam dos vizinhos, falam dos amigos pelas costas, espiam a vida dos outros.  O jornaleiro, o dono da padaria, o cobrador do ônibus, o marido da vizinha, o professor do colégio — ninguém escapa deste prazer humano de falar da vida dos outros.  Pode ser falar bem, mas também falar mal. Algumas pessoas são como eu, transformam tudo em crônicas.

Leandro Alves

Antonio Cicero

 

 

Antonio Cicero

Leandro Alves

 

Nosso letrista morreu.

Você sabe aquela música “Fullgás”, da Marina Lima, aquela com os versos “Você me abre os braços/ e a gente faz um país”?

Foi o Antonio Cicero que fez a letra.

Você se lembra daqueles versos da música “Inverno”, da Adriana Calcanhoto, que dizem “O dia em que fui mais feliz/ eu vi um avião/ se espelhar no seu olhar até sumir?”

Foi o Antonio Cicero que fez.

E do poema “Guardar”, declamado por Fernanda Montenegro, no auge dos seus 95 anos, condensando uma sabedoria de vida profunda?

Foi o Antonio Cicero que fez.

Pois é, então. Nosso poeta morreu.  Morreu no dia 23 de outubro, da Suíça, optando por eutanásia, depois de sofrer anos com Alzheimer.  Ele antecipou a própria morte, antecipou o próprio destido, decidiu o quando, o como, o dia e a hora iria morrer.

O poeta desafiou as leis da vida, as leis da de Deus, as leis da natureza. Saiu de cena quando as luzes da vida se apagaram, quando as luzes dos outros no mundo se acenderam, quando a cortina de sua própria vida se apagou, um momento em que só o próprio poeta e o seu marido sabiam.

Os amigos dele não sabiam a hora, a irmã Marina Lima não sabia a data, os jornais também não sabiam, os leitores menos ainda. Ninguém além dele e do homem que escolheu para amar, seu marido e companheiro de vida.

Cresci com as seguintes frases: “A vida a Deus pertence” — “Se você não sabe quando, saiba pelo menos como” — “Apenas Deus sabe o dia que a gente vai morrer”. De repente, não mais que de repente, vejo um poeta, depois de não conseguir se recordar do que leu nos livros e nem escrever poemas novos devido à uma doença severa, decidir como, quando, além do lugar onde iria morrer.

Ele compôs sucessos junto com a Irmã Marina Lima, com Cláudio Zoli, Adriana Calcanhoto, Lulu Santos.  É dele, de Lulu Santos e Sérgio Sousa o hit “O último romântico”.

Escreveu os livros de poemas “Guardar”, “A cidade e os livros”,  “Livro de sombras: pintura, cinema e poesia”. Além de ensaios filosóficos, textos em coletâneas, uma infinidade de parcerias musicais.

O compositor quis brincar de Deus, decidir a própria hora, ensaiar o próprio adeus, a despedida, as últimas palavras.

Resta a nós saber que suas canções ainda vão ecoar por muitas gerações, seus poemas ainda vão alimentar muita gente, sua sabedoria crítica.   Por meio de sua arte, muitos podem dar sentido às suas vidas.

 

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Foto: Gustavo Noronha

Leandro Alves
Muito prazer!

Mineiro, de Belo Horizonte, cronista, formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC Minas.  Comecei a escrever crônicas postadas nas minhas redes sociais, muita gente gostou e eu continuei. Atualmente, cronista do jornal Porta Voz de Venda Nova. O jornal é impresso, mas esporadicamente também é distribuído online.

Participei do livro “Escrevendo com as emoções”, editora Leonella, sob a curadoria da escritora Márcia Denser.  De 2015 até maio de 2023, participei do Estúdio de Criação Literária, nos formatos presencial e online.

Depois de ler “O padeiro”, crônica de Rubem Braga, e “Flerte”, de Carlinhos de Oliveira, decidi que o que mais desejo fazer nada vida é ser cronista.

Acredito que todos nós, sem exceção, todo dia que saímos de casa, queiramos nós ou não, participamos de um grande filme mudo chamado vida e que tem sempre alguém bisbilhotando tudo o que a gente faz e falando da gente pelas costas. Neste caso, alguns são como eu e escrevem crônicas.  Muito prazer!

Curadoria Márcia Denser