O blog do Leandro Alves

As pessoas são todas umas bisbilhoteiras.  Falam dos vizinhos, falam dos amigos pelas costas, espiam a vida dos outros.  O jornaleiro, o dono da padaria, o cobrador do ônibus, o marido da vizinha, o professor do colégio — ninguém escapa deste prazer humano de falar da vida dos outros.  Pode ser falar bem, mas também falar mal. Algumas pessoas são como eu, transformam tudo em crônicas.

Leandro Alves

Aquele bicho era um homem

 

 

 

Aquele bicho era um homem

 

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.”

( “O bicho”, Manuel Bandeira)

Leandro Alves

 

Memórias da virada cultural de Belo Horizonte – Belo Horizonte é uma cidade que dorme muito cedo e, no máximo até às onze horas, muitas vezes até bem antes disso, os garçons já estão passando pano na mesa, baixando as portas até a metade, olhando os fregueses do cara de poucos amigos — diferente de São Paulo: ao dar meia noite a gente ia comer sanduíche de pernil para curtir a madrugada — e a gente sente aquele frio na barriga de ir embora de madrugada; só que na Virada Cultural a polícia é tem um cuidado redobrado nas ruas, polícia para todo lado, comércio aberto, uma multidão livre, leve e solta curtindo a noite, já que são raras as vezes que o mineiro tem oportunidade de ser notívago.

Pessoalmente, acredito que já tivemos viradas melhores: há anos atrás o belorizontino via o Tom Zé, na Guaicurus; O Jota Queste, na Praça da Estação; um grupo de Salsa, no Parque Muncipal. Este ano de 2023 tudo foi bem aquém: um grupo de atrações de grupos desconhecidos, alguns chatíssimos, valendo a pena apenas por causa da Gabi Amarantos e dos Titãs, todos os dois na Praça da Estação.
Só que a possibilidade de andar livre e despreocupado pela madrugada me faz gozar desta experiência como nunca, o que acontece com muita gente.

O blues, a salsa, as mulheres, o ar fresco da madrugada. Tudo me tomava.

Aí deu cinco horas da manhã e fiquei esperando as lanchonetes abrirem. Acredito que me tornei cronista pelo gosto de ir de manhã cedo numa lanchonete, pegar uma broa de fubá quentinha, tomar um café com leite e ficar olhando pessoas nas ruas. Como se vestem, o que elas comem, se consigo ouvir alguma conversa, o tom de voz de cada uma. Costuma me fazer um bem enorme tudo isso, mas não naquele dia.

Enquanto eu comia a broa de fubá e tomava minha média com calma, um morador de rua entrou na lanchonete e sentou. Em silêncio, de costas para todo mundo, sem incomodar, envolto num cobertor velho e sujo, com os cabelos e a barba enormes.
Se aqueles cabelos fossem cortados e ele fizesse a barba, será que ele ainda reconheceria o próprio rosto? Se usasse roupas novas e tivesse outra aparência, seus companheiros de rua saberiam que é ele? Se ele cortasse o cabelo e usasse roupas novas, será que ele seria barrado na mesma lanchonete voltando lá no mesmo dia?
Enquanto tomava meu café da manhã, a garçonete disse umas frases que nunca vou esquecer: “Acho que você gostou do porrete do dono da outra vez”, “Vai ver como chamo de novo”, “Se eu fosse você, saía daqui.”

Tomei meu café da manhã tentando segurar as minhas lágrimas. Enquanto eu tomava meu café da manhã, um outro ser humano igual a mim era expulso com ameaça de apanhar. Aquelas palavras para mim eram um golpe, doíam demais, mostravam um privilégio do qual não me orgulho. A tristeza me chegava junto com os primeiros raios de sol.

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Respostas de 2

  1. Amigo, eu acho a proposta da Virada Cultural fascinante mas, tenho andado meio por fora da vida cultural de nossa cidade…
    Que pena ver um ser humano ser expulso de um ambiente. E como muitos estão vivendo em condições subhumanas hoje em dia.
    É de doer o coração. Só Deus p ter misericórdia.
    Muito obrigado por sua ótima crônica!!

    1. Obrigado pelo apoio, querido. Pois é. É uma dor sem igual ver alguém sendo expulso de um lugar onde a gente come, sentir fome, injusto.

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Foto: Gustavo Noronha

Leandro Alves
Muito prazer!

Mineiro, de Belo Horizonte, cronista, formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC Minas.  Comecei a escrever crônicas postadas nas minhas redes sociais, muita gente gostou e eu continuei. Atualmente, cronista do jornal Porta Voz de Venda Nova. O jornal é impresso, mas esporadicamente também é distribuído online.

Participei do livro “Escrevendo com as emoções”, editora Leonella, sob a curadoria da escritora Márcia Denser.  De 2015 até maio de 2023, participei do Estúdio de Criação Literária, nos formatos presencial e online.

Depois de ler “O padeiro”, crônica de Rubem Braga, e “Flerte”, de Carlinhos de Oliveira, decidi que o que mais desejo fazer nada vida é ser cronista.

Acredito que todos nós, sem exceção, todo dia que saímos de casa, queiramos nós ou não, participamos de um grande filme mudo chamado vida e que tem sempre alguém bisbilhotando tudo o que a gente faz e falando da gente pelas costas. Neste caso, alguns são como eu e escrevem crônicas.  Muito prazer!

Curadoria Márcia Denser