Outros modos de usar a rotina
Leandro Alves
“Dias perfeitos”, Wim Wenders
Na época da pandemia da Covid 19, quando conviver com os outros (frequentar festas, visitar parentes, ir aos restaurantes, cortar cabelo, comer um pastel numa lanchonete) era literalmente colocar a vida em risco, vi uma cena que me deixou fascinado: dois idosos vizinhos de porta conversando às gargalhadas. Ela tinha que pegar as sacolas de lixo, colocar para os lixeiros levarem, viu o vizinho de porta, ele disse uma frase engraçada e eles riam. A frase era assim: “Nada mata mais do que a língua dos vizinhos.” Eu não sabia o contexto da frase. Eles, sim.
Quando uma gripe era uma ameaça de uma doença contagiosa, rir com um vizinho na hora de colocar o lixo para fora era, acredite, um programa e tanto.
De lá pra cá, comecei a reparar no fato de que os dias nunca são iguais. “Who knows what tomorrow brings?”, dizia uma canção antiga do Joe Cocker.
Pensei também que nem todo mundo era como meus vizinhos de bairro: muita gente passou pela pandemia mergulhado em livros sem querer que ninguém incomodasse, outros faziam cursos online e não queriam conversa, alguns permitiam que o trabalho ocupasse vinte e quatro horas por dia.
Mesmo não estando mais na pandemia, tem gente que não é de falar muito. Não é de festas, de jogar conversa fora, de falar ao telefone; mesmo assim, a vida traz mudanças que altera a rotina dela.
Emprestar um livro incentivando um jovem a gostar de ler, rir com um desconhecido ainda fossem crianças, aplaudir um músico de rua que quer mostrar seu talento, retribuir brevemente um sorriso de alguém. Se a dor da vida deixa as pessoas mudas, o sorriso do outro pode ser a salvação.
O cronista Arthur Da Távola dizia: “Música é vida interior e quem tem vida interior não padece de solidão.” Apresentar a arte para alguém, encaminhar o outro no mundo dos livros e da música, mostrar para alguém a poesia da vida. Tudo isso pode ser uma ponte entre uma pessoa e a outra.
Todas essas coisas me ocorreram ontem ao ver o filme “Dias perfeitos”, do diretor alemão Wim Wenders, com um ótimo ator chamado Koji Yakusho, e um roteirista chamado Takuma Takasaki.
O filme fala de um homem chamado Yamaha, que trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio, é calado e parece bem assim. Ele vai aos poucos lidando com as surpresas que chegam no cotidiano dele.
Que trilha sonora incrível, meus amigos!
“The house of the rising sun”, Animals; “Perfect day”, Lou Reed; “Redondo Beach, Patti Smith”; “Brown Eyed Girl”, Van Morrison. Fora “The house of the rising sun”, em japonês.
Eu já adoro o cinema japonês de gente como Mikio Naruse, Mizouguchi, Nagisa Oshima e considero o cinema do Japão como o melhor do mundo. Por outro lado, “Asas do desejo” é um filme que adoro, que pretendo rever pelo menos umas mil vezes ainda.
Como não gostar desta parceria do Wim Winders com o Japão? Impossível!
Será que o filme de ontem é uma homenagem mais do que merecida ao mestre Yasujiro Ozu?
O que sei é que ainda é possível ver no cinema filmes capazes de fazerem com que muita gente saia de casa, mesmo que debaixo de chuva, para encarar uma sala lotada. É impossível suportar a vida sem livros, filmes, músicas que façam ver as coisas de outra forma.
Respostas de 2
Muito importante sua crônica!!!!
Especial por nós levar p uma outra dimensão da vida!
A contada pelo cinema!!!
Muito obrigado amigo!!
Muito obrigado!