Sonhos
Leandro Alves
Para Lino de Albergaria
A manhã era linda. O céu azul claro. Segunda-feira. O homem, que havia deixado seu RG amassar dentro da carteira, quando o RG era daqueles enormes, estava no CRAS Vila Coqueiral para tirar um documento novo.
Sem celular na mão e sem vontade de ouvir música, ele começou a observar as pessoas ali e o que elas faziam para matar o longo tempo de espera ali na fila. Alguma as pessoas, assim como ele, queriam tirar documentos novos nas Uais do centro de Belo Horizonte, queriam agendar ali no estabelecimento; outras, bem mais humildes, queriam conseguir passagem de ônibus para procurar emprego no centro; outras, queriam cesta básica. Em todo caso, ali, o homem podia prestar atenção nelas e ouvir suas histórias.
Foi então que uma menina, lá pelos seus dezessete anos mais ou menos, negra, magra, nem alta nem muito baixa, falante,puxou assunto com ele. Ele reparou que e menina, não muito diferente de outras da idade dela, mexia muito no celular, digitava o tempo todo, o que significa que ela lia e escrevia compulsivamente.
— Estou escrevendo um livro.
— Um livro? Sério?
— Eu estava aqui tentando terminar um capítulo novo para ele.
Reparem bem: o capítulo de um livro. Não um poema ou um artigo para o colégio, mas um capítulo, uma parte de um romance, ficção, da brava, ali na fila, enquanto aguardava atendimento.
— Você escreve no celular mesmo? Não acha que no computador seria melhor?
A menina explicou que no celular havia um aplicativo, uma espécie de rede social, para que jovens como ela escrevessem livros inteiros e postassem no Feed de Notícias. E, a medida que o jovem escritor postava seu livro, outros aguardavam ansiosamente os capítulos e os comentavam.
— Você não corrige os capítulos antes de publicar?
— Não.
O homem, que escreve crônicas, falou com a menina que não sabe se um dia fará ficção, se terá fôlego, disciplina para uma narrativa longa.
Será que existe no colégio onde ela estuda algum professor prestando atenção numa aluna tão especial? Será que os pais já foram com ela até o cinema? Que biblioteca ela frequenta? Ela já viu algum concerno no Parque Municipal? Foi ao teatro? São perguntas que o homem fez a si mesmo enquanto a garota compartilhava seus sonhos.
— Você estuda?
— Estudo?
— Em que série você está?
— No Ensino Médio?
— Quer fazer faculdade um dia?
— De moda.
— Eu já tiro fotos. Você quer ver?
O homem diz que as fotos são lindas. Pergunta onde ela tirou aquelas e a garota diz algo como “Você conhece o Bar da Mainha?”, “Sabe onde é o escadão?”, “Então, foi lá”. Diz que o fotógrafo era ali da comunidade mesmo , que não cobra nada não, que torcia muito por ela, queria vê-la bem.
O cronista finalmente foi atendido, chegou o momento de se despedir da garota, para quem ele desejou, do fundo do coração dele, boa sorte. Não sabe ainda hoje se ela um dia vai querer publicar um livro físico e colocar para vender nas livrarias. Se um dia acontecer, ele quer ser o primeiro da fila de autógrafos. Modelo, escritora, modelo e escritora. Seja lá o que for. Que ela seja muito feliz.
Atualmente, as carteiras de RG são feitas pela Uai, mas os agendamentos são online. De qualquer forma, como nem todos, infelizmente, têm acesso a um computador, os agendamentos pelo CRAS ainda vão durar muito tempo. Talvez por ali passem muitas meninas sonhadoras como aquela. Para elas é dedicada esta crônica.