O blog do Leandro Alves

As pessoas são todas umas bisbilhoteiras.  Falam dos vizinhos, falam dos amigos pelas costas, espiam a vida dos outros.  O jornaleiro, o dono da padaria, o cobrador do ônibus, o marido da vizinha, o professor do colégio — ninguém escapa deste prazer humano de falar da vida dos outros.  Pode ser falar bem, mas também falar mal. Algumas pessoas são como eu, transformam tudo em crônicas.

Leandro Alves

Um jogo de truco

 

Um jogo de truco

Leandro Alves

Ela era uma advogada numa empresa de semáforos de trânsito e das poucas mulheres num ambiente cheio de homens. Sua figura, só por ser feminina, já era imponente. Loira de cabelos longos, magra de corpo, vestida num terninho preto o tempo todo. Tinha uma sala só para ela, cumprimentava todos com educação, era chamada de doutora. Os homens ali trabalhavam duro para consertarem os semáforos da cidade, conversavam sobre futebol, levavam ovos na marmita com arroz e feijão, sentiam o rastro do perfume da doutora quando ela chegava para almoçar de manhã cedinho.

Era meio que um consenso entre quase todo mundo ali: “Mulher que a gente não pode chegar, é melhor nem olhar.”
Se alguém sonhava um pouco que fosse com ela, guardava só pra ele.

Até que veio a festa de final de ano da empresa

Mas algo ninguém sabia: o fraco da doutora era o truco. Além de aquela cerveja gelada, claro.

 

Churrasco, cerveja, música boa, torresmo, baralho. Tinha tudo ali.
O peão de obra dizia cabisbaixo: “É truco.” A doutora subia na dava um tapa violento na mesa e gritava: “É seis, ladrão”, “É seis”.
Subia nas cadeiras, dava tapas na mesa, gritava com energia.
Pior: a doutora também tinha um fraco com bebida. Abraçava a todos, sem distinção, patrões e empregados, todos abraçando na cintura.

Aí alguém começou jogar cerveja para o alto. Quando ia se molhar,  a doutora ficava na frente de algum peão e se jogava nos braços dele. Ele a segurava, por trás, pegando bem pela cintura. Todo mundo ali se revezava para proteger a doutora.

Na segunda- feira tudo voltou ao normal.  O trabalho duro, patrão marcando em cima, a advogada voltou a ser aquela mulher séria que só ficava no escritório.  Porém, todo mundo sabia que o fraco dela era um jogo de truco.

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Respostas de 2

  1. Gostei….a vida é assim mesmo!!!
    Muito boa a crônica amigo!!!
    Deus te abençoe e inspire!!!!

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Foto: Gustavo Noronha

Leandro Alves
Muito prazer!

Mineiro, de Belo Horizonte, cronista, formado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC Minas.  Comecei a escrever crônicas postadas nas minhas redes sociais, muita gente gostou e eu continuei. Atualmente, cronista do jornal Porta Voz de Venda Nova. O jornal é impresso, mas esporadicamente também é distribuído online.

Participei do livro “Escrevendo com as emoções”, editora Leonella, sob a curadoria da escritora Márcia Denser.  De 2015 até maio de 2023, participei do Estúdio de Criação Literária, nos formatos presencial e online.

Depois de ler “O padeiro”, crônica de Rubem Braga, e “Flerte”, de Carlinhos de Oliveira, decidi que o que mais desejo fazer nada vida é ser cronista.

Acredito que todos nós, sem exceção, todo dia que saímos de casa, queiramos nós ou não, participamos de um grande filme mudo chamado vida e que tem sempre alguém bisbilhotando tudo o que a gente faz e falando da gente pelas costas. Neste caso, alguns são como eu e escrevem crônicas.  Muito prazer!

Curadoria Márcia Denser